Arquivo do mês: maio 2017

Irregularidades no Mané Garrincha acontecem desde 2007

Da capacidade da arena ao modelo de licitação, a construção do Estádio Nacional Mané Garrincha foi alvo de dezenas de questionamentos nos últimos oito anos, desde que o governo resolveu construir o espaço para a Copa do Mundo de 2014. O Ministério Público de Contas e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios apontaram indícios de superfaturamento da obra, pediram suspensão de repasses ao consórcio responsável pela empreitada, recomendaram uma arena menor e mais modesta, mas o GDF venceu todas as batalhas na Justiça e no Tribunal de Contas do Distrito Federal. O resultado foi um gigante de concreto às margens do Eixo Monumental, ao custo de R$ 1,575 bilhão. Segundo a Polícia Federal, o sobrepreço pode chegar a R$ 900 milhões.

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Os primeiros questionamentos sobre a arena surgiram ainda em 2007, quando o Brasil ganhou o direito de sediar o evento. Naquele ano, o Ministério Público de Contas entrou com uma representação no TCDF, pedindo que os órgãos de fiscalização e controle se preparassem para o evento, com capacitação e contratação de pessoal. A ideia era evitar erros graves cometidos durante os Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro. As obras para o evento internacional no Rio, em 2007, foram orçadas em R$ 300 milhões, mas o custo final superou R$ 4 bilhões.

Dois anos depois, quando o governo lançou o edital de pré-qualificação para contratar empresa responsável pela reforma e ampliação do Mané, o MP de Contas questionou o modelo por entender “que a pré-qualificação nada mais é do que a antecipação da fase de habilitação em concorrência pública”. Além disso, faltavam informações para atrair interessados na disputa. O projeto de arquitetura ainda não havia sido concluído nem havia orçamento estimado em planilhas que detalhassem a composição e os custos unitários dos itens previstos para a obra.

Também não havia sido definido que serviços seriam passíveis de subcontratação. O edital de pré-qualificação chegou a ser suspenso pelo Tribunal de Contas, mas, depois de correções realizadas no edital, a licitação foi liberada. O MP recorreu, a análise do recurso, no entanto, acabou sobrestada e o debate só foi retomado em 2016, quando o estádio estava pronto e o debate havia perdido o sentido.

Diante das regras estabelecidas na pré-qualificação, não houve concorrência: somente dois consórcios se apresentaram para a disputa e um deles, encabeçado pela Odebrecht, deu apenas um lance de cobertura, combinado com a Andrade Gutierrez e com a Via Engenharia — estas últimas vencedoras do certame. As delações da Odebrecht trouxeram à tona a verdade: a empresa simulou concorrência para ajudar a Andrade Gutierrez na licitação do Mané Garrincha. A real falta de competitividade é um dos motivos que explicam a sucessão de erros e de superfaturamento na empreitada.

A reforma da arena teve orçamento inicial estimado em R$ 696 milhões, no entanto, os aditivos contratuais mais do que dobraram o valor contratado inicialmente. Pela Lei de Licitações, o total de aditivos em uma reforma não poderia superar 50% do total do contrato. Em 2012, com um termo aditivo no acerto firmado com o consórcio, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) excluiu essa cláusula do contrato original.

Prejuízo

Em várias situações, o Ministério Público de Contas também pediu glosas, que são retenções de pagamentos às empresas. Em 2013, em um dos processos que tramitam no Tribunal de Contas do DF, o MP requisitou uma glosa de R$ 34 milhões referente a alguns aditivos feitos no contrato. No ano seguinte, procuradores apontaram que esse prejuízo já havia chegado a R$ 60 milhões. Houve pedido de vista e o processo só voltou a ser debatido este ano, quando não havia mais possibilidade de retenção de valores, pois as empresas já haviam recebido todos os recursos previstos. Na última manifestação registrada nesse processo, o MP de Contas lamentou a falta de glosas. “Tivessem sido implementadas no momento devido, não haveria o risco de vultosos recursos se perderem, como temos visto em diversos processos.” Até hoje, o TCDF não deliberou sobre esses pedidos.

Um dos contratos mais polêmicos do Estádio Nacional é a colocação da cobertura. O Ministério Público de Contas fez vários questionamentos com relação a essa obra, sobretudo no que diz respeito a material usado para cobrir a arena — uma membrana revestida de fibra de vidro que elevou em R$ 36 milhões o valor estimado. Depois de o MP questionar esses repasses duas vezes, o TCDF autorizou retenções de repasses ao consórcio e o contrato acabou repactuado.

No processo de compra do guarda-corpo, o Ministério Público de Contas apontou várias irregularidades, como o fato de serviços similares já estarem previstos no contrato principal da reforma do Mané Garrincha. Diante das constatações, a própria Novacap reconheceu a falha e refez os levantamentos de quantitativos. Com isso, o valor previsto na licitação caiu de R$ 10,4 milhões para R$ 3,4 milhões e o TCDF autorizou a continuidade do certame. Houve novos questionamentos do MP, que solicitou retenções de pagamento às empresas. Os autos ainda tramitam na Corte e estão em fase de análise de recurso. No processo de licitação do gramado, orçado em R$ 9 milhões, também houve questionamentos. O TCDF verificou a ocorrência de prejuízos no valor de R$ 4,8 milhões, mas, até hoje, não houve decisão final.

Fonte: Jornal Correio Braziliense

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Polícia Federal demonstra que o caminho da corrupção no DF é tortuoso

Há algum tempo escrevo neste espaço sobre a corrupção no DF. Por diversas vezes escrevi sobre fatos relacionados ao PT, respondi várias sindicâncias e IPM´s por isso, normalmente por “criticar o governo” ou “normas existentes”.

Alguns fatos ocorridos nesta semana estão comprovando algumas questões levantadas aqui ainda no ano de 2013, ou até há mais tempo, quando ainda falávamos sobre a “Caixa de Pandora”, no governo Arruda.

No dia 09 de outubro de 2013 escrevi um texto sob título: O caminho da corrupção no DF. Nele afirmo:

É impressionante! Enquanto alguns partidos e pessoas tentam botar em prática seus projetos políticos, o PT tenta colocar em prática seu projeto se poder. O que isso significa? Que vale tudo para se manter no poder. Até mesmo neutralizar toda e qualquer oposição. Mesmo com a possível continuidade da aliança entre PMDB e PT e a provável neutralização de Arruda e Roriz, já duvido da reeleiçao de Agnelo no DF

Neste mesmo post também explanei sobre algumas perseguições políticas que começaram a ocorrer a partir deste período:

Em decorrência disso fui “enquadrado” por alguns do meu “grupo político”  na tentativa de me silenciar. Graças a Deus nunca tive “rabo preso” com ninguém, ainda mais com o governo do PT. Nunca tive medo ou receio de falar o que penso. Como a maioria, ajudei a eleger o atual governo, mas não irei me calar ao ver algo que não concordo. Por ter ajudado a Elegê-lo é que tenho a responsabilidade de denunciar possíveis erros ou desvios de conduta.

Posteriormente, no dia 23 de dezembro de 2013 fiz um novo post com título: O caminho da corrupção no DF: Emendas parlamentares e cartas convites. Novamente, falo sobre ameaças e corrupção:

Durante minha temporada de dois anos nos bastidores do poder não compreendi algumas coisas: 1) A primeira é por que a maioria dos parlamentares ao invés de fazer política (buscar o bem comum), opta apenas em “fazer dinheiro” (busca apenas o bem individual); 2) A segunda é por que “todo mundo” sabe das taxas de “corretagem” para liberação de emendas (que variam de 10% a 30%) e ninguém faz nada, principalmente o MP; 3) A terceira, por que não se faz um cruzamento das emendas com as empresas que as executa e os beneficiários (donos das empresas e aqueles que recebem a propina), por meio da análise de vínculos e não se acaba com essa pouca vergonha, além é claro das “cartas convites”, que hoje são a maior “enganação” para beneficiar parentes e amigos donos de empresas. 4) A quarta, por que a maioria dos parlamentares abrem mão do bem mais importante de um parlamentar, ou seja, sua VOZ! Os deputados e senadores do DF estão calados, amordaçados, por quê? No próximo ano (2014) algumas investigações em curso poderão responder tais questionamentos! Parlamentares, assessores e empresários já estão preocupados.

Em uma das falas sou específico quanto a ameaça que ocorreu em um café no Shopping Pátio Brasil:

No dia 09 de outubro fizemos um outro texto sobre o tema, onde intitulamos: “O caminho da corrupção no DF”. Vários “poderosos” ficaram irritados. Nós do Blog Policiamento Inteligente, chegamos a ser convidados para tomar um café com um Secretário de Estado, um Deputado e um “operador dos bastidores”, onde nos fizeram ameaças veladas para nos calar. Mais uma vez apresentamos o tema, mas desta vez com uma “análise” mais clara do tema, para quem sabe ler um pingo é letra:

A corrupção está instalada no Brasil desde sua descoberta. Há anos o crime organizado está se especializando. Sabe-se que aquilo que o diferencia da quadrilha é a participação de servidores públicos, de carreira ou não. “O modus operandi” é sempre o mesmo: criam-se empresas de eventos, factory, construtoras, criam-se redes de relacionamento sistêmicas entre empresários e políticos de vários estados e Lava-se dinheiro. As conexões mais comuns hoje são entre “parceiros” de São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Ceará, Tocantins e Goiás. As investigações da Polícia Federal estão demonstrando tudo isso! Quem está devendo que pague! O MP conhece o caminho das pedras…

Com as prisões de dois ex-governadores, dois ex-vices governadores, dois senadores do DF e diversos empresários e ex-ocupantes de importantes cargos no governo, percebe-se que não é de hoje a corrupção no DF.

Há muito mais coisas a serem investigadas sobre os desvios e passa também pelas outras Secretarias de governo, Administrações regionais e pela Câmara Legislativa do DF. Deputados da base do governo daquela época precisam ser responsabilizados.

A reportagem da jornalista e amiga Isa Stacciarini do Jornal Correio Braziliense explica um pouco do que eu queria falar naquele período. Acredito que o tempo é o senhor da razão. Não é atoa que todos os IPM`s daquele período foram arquivados. Lendo-os hoje percebo o quanto foi feito e produzido naquele período. E porque tanta perseguição até os dias de hoje. Vale a pena ler a reportagem abaixo:

Responsável pelo inquérito que investiga a participação de ex-chefes do Executivo local em milionário esquema de corrupção durante a construção do Estádio Nacional Mané Garrincha, a delegada da Polícia Federal Fernanda Costa de Oliveira detalhou que o recebimento do dinheiro ilícito pelos investigados ocorria de três formas: em dinheiro, via operadores; por meio de doações eleitorais; ou em pagamentos de eventos de parceiros políticos, como a compra de ingressos para a Copa do Mundo. Segundo a investigadora da Delegacia de Inquéritos Especiais da PF (Deleinque), “isso revela o retrato (da política) de Brasília”.

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 Fernanda recebeu o Correio na sala dela, na Superintendência da Polícia Federal, em Brasília. O inquérito da Operação Panatenaico estava sobre a mesa de trabalho, próximo a fotos da família e de uma máquina de café. “A cobrança de propina em Brasília foi sistêmica e passou de um governo para o outro”, afirma. Entre os acusados da participação no esquema que causou rombo de R$ 1,3 bilhão aos cofres da Terracap estão os ex-governadores José Roberto Arruda (PR) e Agnelo Queiroz (PT), além do ex-vice-governador Tadeu Filippelli (PMDB). Eles e mais sete acusados foram presos temporariamente na terça-feira. Estima-se que o superfaturamento da arena tenha sido de R$ 900 milhões.

Segundo a delegada, os pagamentos aos políticos eram fracionados. “Como havia um acordo prévio, quando o dinheiro saía, havia o repasse do valor da propina. Não eram grandes valores; por isso, apreendemos listas de pagamentos com individualizações com datas e valores picotados”, explicou Fernanda.

Delegada há 10 anos, a investigadora está à frente de uma das áreas mais sensíveis da Polícia Federal. Antes da função de chefia, ela atuou como agente da Polícia Federal em Foz do Iguaçu, no Paraná. Além disso, a paixão pela PF começou cedo. O pai de Fernanda é agente da corporação e um dos tios paternos também é delegado federal. “Nunca pensei em fazer outra coisa”, ressaltou. Confira abaixo entrevista com Fernanda Costa de Oliveira.
Como era o pagamento da propina?
O recebimento tinha três formatos: em cash, via operadores; por doações eleitorais; ou por pagamentos de eventos, por parte da Andrade Gutierrez, a parceiros políticos dos investigados. Exemplo: compra de ingressos da Copa do Mundo para atender algum tipo de grupo politicamente associado.

Como era usado esse dinheiro ilícito?
Tem o caixa 2, em formato de doação oficial, que estava atrelado à própria execução da obra (do Estádio Nacional Mané Garrincha). O dinheiro entregue em cash saía no formato fracionado. Normalmente, é apresentada a medição da execução da obra e, depois, feita a liquidação dos valores às empresas. Como havia um acordo prévio, quando o dinheiro (público) era direcionado à empreiteira, havia o repasse do valor da propina. Apreendemos listas de pagamento de propina. Nelas, há individualizações com datas e valores picotados. É possível ver que os pagamentos de propina casaram exatamente com a liberação do dinheiro ao consórcio.

Para que esse dinheiro era utilizado?
Não conseguimos fazer esse tipo de levantamento porque o fato se deu entre 2008 e 2014.

Além de realizarem os pagamentos de campanha, os políticos investigados enriqueciam ilicitamente?
Grande parte do dinheiro era espalhado entre parceiros políticos. Hoje, não posso falar de aquisição direta de um carro ou de um apartamento com o valor recebido em propina.

O que embasa a Operação Panatenaico, além das delações?
Temos laudos periciais do processo licitatório que apontam direcionamentos. A delação não se presta só a mostrar narrativas. Os delatores apresentam provas que corroboram a história. Esse é um inquérito diferenciado, que tem pontos negativos e positivos. Ponto positivo: começamos as investigações com muita materialidade. Ponto negativo: como as delações tiveram sigilos levantados, já se deu publicidade.

De que forma a PF desencadeou a Operação Panatenaico?
Essa operação é o perfeito retrato de algo que se inicia com uma hipótese criminal definida, trazida por termos de colaboração. É diferente de quando iniciamos um processo em que temos de criar uma hipótese do nada. Quando já vem com a narrativa, a gente só constitui o que já é trazido na queixa-crime de uma forma bastante objetiva e cirúrgica.

Há muito mais por vir?
Em relação ao Estádio Mané Garrincha, não posso apresentar um termômetro. Mas as delações são feitas em anexos, por temas. Esse inquérito trata do Estádio Nacional. Mas a Andrade Gutierrez trouxe outros assuntos que vão ensejar a instauração de vários inquéritos, os quais, possivelmente, envolverão os mesmos personagens, como o BRT.

O que dá para concluir a respeito do perfil dos investigados? 

São pessoas do primeiro escalão, como ex-governadores, ex-vice-governador, presidentes de órgãos públicos… Esse é o retrato de Brasília. É um grupo político que se estabeleceu há muitos anos. Tanto que a situação de cobrança de propina foi sistêmica e passou de um governo para o outro.

Há políticos da atual gestão envolvidos?

Não, porque os contratos referentes ao Mané Garrincha foram encerrados em 2014. Então, as tratativas estabelecidas no início do certame, em 2008, se encerraram e acabaram os repasses à Andrade Gutierrez. Então, não temos a referência de ilegalidades relativas ao Mané nesta gestão.

E quanto ao superfaturamento? É de R$ 900 milhões ou o valor pode ser mais alto?
Esse é o valor atualizado em 2017. O parâmetro foi trazido pelo Tribunal de Contas do DF. Estamos encerrando um laudo de superfaturamento feito pela própria Polícia Federal que vai corroborar a estimativa inicial. Como o relatório ainda não estava pronto e eu precisava executar a operação o quanto antes, devido à publicidade que se deu, peguei uma informação oficial, onde eles confirmam o superfaturamento. Mas ainda virá um laudo pericial.

Então, o rombo pode ser maior?
Pode ser maior ou menor, mas imagino que deve ser similar.

A senhora pediu a prisão preventiva, mas a Justiça optou pela temporária. O que houve?
Eu sempre fundamento tecnicamente as minhas peças, de um forma que eu possa defender dentro dos requisitos legais. Eu achei que havia os requisitos legais para a preventiva. O Ministério Público consignou que, como não havia possibilidade de apresentação de denúncia, naquele primeiro momento, se manifestaria pela temporária. Mas não há possíveis prejuízos a uma conversão em preventiva.

Por que foi importante prender os investigados?
São pessoas articuladas politicamente. Têm influência dentro dos cenários das instituições, mesmo que não estejam à frente dos órgãos do GDF. Existe uma articulação. O primeiro momento é o mais sensível de uma investigação. É o período em que você pode pegar as provas sem aviso. O pedido de prisão é sempre voltado ao favorecimento da instrução do inquérito a fim de garantir a materialidade.

Essas pessoas poderiam destruir provas?
Destruir provas ou atrapalhar a condução da investigação, considerando que nós vamos ouvir testemunhas nesses primeiros dias e outras medidas podem ser conduzidas. A liberdade dos investigados poderia causar danos irreparáveis.

Muitos dos presos temporariamente pediram a revogação das prisões… 
Acredito que não houve mudança de cenário entre a data do meu pedido e hoje. Então, seria uma congruência informar que, há 24 horas, existiam motivos e, agora, não. Faz sentido, na lógica de defesa, dizer que não existem mais razões para a reclusão. Eu defendo que ainda existem.

Quais são os crimes investigados?
Em um primeiro momento, lavagem de dinheiro, corrupção passiva, corrupção ativa, organização criminosa, quadrilha ou bando e fraude licitatória.

A senhora acredita que a operação vai interferir no cenário das próximas eleições?

Acho que essa atuação da Polícia Federal gera impactos e entra na casa do cidadão brasiliense.

Quando o inquérito será concluído?

Até o início do segundo semestre é possível. Estou destacada para apresentar um resultado o quanto antes.

Por  Isa Stacciarini – Correio Braziliense

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Teoria do etiquetamento: a criação de esteriótipos e a exclusão social dos tipos

Por Diego Augusto Bayer, Cristiano Lázaro Fiuza Figueiredo e Caio Mateus Caires Rangel
A teoria do etiquetamento, também conhecida como “labelling aprouch”, bem defendida por Becker em seu livro “Outsiders”[1], é enquadrada como a “desviação”, ou seja, uma qualidade atribuída por processos de interação altamente seletivos e discriminatórios. Tem esta teoria como objeto os processos de criminalização, ou seja, os critérios utilizados pelo sistema penal no exercício do controle social para definir o desviado como tal.Realiza-se, um estudo inicial verificando o fenômeno denominado cifra negra, que representa o número de crimes que são efetivamente praticados e que não aparecem nas estatísticas oficiais, o que demonstra que apesar de todos nós já termos praticado algum crimes na vida (ameaça, crime contra a honra, apropriação indébita de um cd ou livro) observa-se que apenas uma pequena parcela dos delitos serão investigados e levarão a um processo judicial que repercute em uma condenação criminal. Com isto, o risco de ser etiquetado, ou seja, “aparecer no claro das estatísticas”, não depende da conduta, mas da situação do indivíduo na pirâmide social. Por isso o sistema penal é seletivo, pois funciona segundo os estereótipos do criminoso, os quais são confirmados pelo próprio sistema.

Assim, nos últimos anos do Século XX houve o início de um novo pensamento de não correção ao controle do crime, mas uma nova criminologia pautada em novas filosofias da pena, centrada nos combates dos riscos da modernidade, analisando a vítima e na defesa da sociedade em detrimento do criminoso. Esta é a nova criminalidade: a do “outro”[2], qual transforma um criminoso em demônio e venera as intervenções preventivas, aumentando o poder punitivo do Estado, baseado em um ambiente de dramatização midiática dos medos populares. O criminoso não é mais uma pessoa normal, desajustada, vulnerável e propensa ao desvio. Ao contrário, o “outro” é fonte de perigo, o qual necessita ser neutralizado, uma vez que é visto como fonte imediata de perigos e incertezas[3].

As ideias de Garland aproximam-se dos pensamentos de Jock Young, qual também entende que a política criminal foi afetada pela modernidade. Com base nestes pensamentos, YOUNG analisa que a existência de uma transição do período “pós guerra” para o período de crise iniciado por volta de 1960, se constitui no movimento da modernidade, cujo sistema passou a separar e excluir, em uma política de criação de estereótipos criminosos[4].

O mundo atual, na lição de YOUNG, configura-se como um mundo no qual as forças de mercado transformaram as esferas de produção e consumo, questionando as noções de certeza material e valores incontestes, substituindo-as por um mundo de riscos e incertezas, dotado de pluralidade e de uma precariedade econômica e ontológica. Todavia, a transição à modernidade recente pode ser vista como um movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente. Ou seja, da assimilação para a exclusão[5].

Dessarte, dos ensinamentos de YOUNG e GARLAND, pode-se afirmar que a modernidade recente elimina a política de bem estar, iniciando uma sociedade individualizada, onde, qualquer possível privação ao individualismo é uma causa potencializadora da criminalidade mais conflitiva e cruel[6].

Esta nova idéia de realidade, criada através das políticas neoliberais, acabam por dividir as pessoas em dois grupos, ou seja, os que estão dentro da nova ordem e os que estão fora da nova ordem, cabendo aos meios de comunicação reproduzir esta divisão como sendo os “bons” e os “maus”, os “amigos” e os “inimigos”.

Zaffaroni e Pierangeli[7] ensinam que esta nova realidade faz com que o Estado, no exercício de seu jus puniendi, necessite encontrar um lugar para colocar aqueles que estiverem fora da nova ordem, ou seja, onde colocar os “inimigos”, utilizando-se para tal o Direito Penal, qual deveria ser utilizado apenas recriminar condutas, para também recriminar características dos infratores, apenas com a idéia simbólica de “combater os medos” da sociedade. Esta característica é o que a Criminologia Crítica chama de rotulação, etiquetamento, criação de estereótipo do criminoso.

Os meios de comunicação, na função de difundir essa divisão, utiliza de forma indevida da imagem dos denominados “inimigos”, criando em todo dos fatos verdadeiros espetáculos, aumentando ainda mais a reprovação social, rotulando os acusados e os estigmatizando para sempre perante a sociedade. É o que chamamos de utilização dos meios de comunicação para a promoção da violência simbólica.

Bourdieu[8], expõe a violência simbólica como aquela “violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com a frequência dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou sofrê-la”. Este processo de rotulação dos indivíduos pelos meios de comunicação é colocada como uma das manifestações mais cruéis da violência simbólica.

Os termos “estigma”, “etiquetamento”, “estereótipos criminosos”, constituem a chamada teoria do etiquetamento (ou labelling approach). A teoria do etiquetamento possui como tese central, conforme Andrade[9] que:

(…) o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção.

Esta teoria, também pode ser chamada de criminologia da reação social. Segundo Becker[10], a tese da criminologia da reação social entende que:

(…) os grupos sociais produzem o desvio ao criar regras cuja a infração constitui o desvio, ao aplicar estas regras a pessoas particulares e a classificá-las como estranha. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa realiza, mas sim uma consequência de que outros apliquem regras e sanções a um transgressor. O desviante é alguém a quem foi aplicado este rótulo com êxito; o comportamento desviante é a conduta que a gente rotula desse modo.

A criação destes rótulos, ou seja, dos estereótipos criminosos permitem a prática não oficial de extermínio e exclusão de pessoas. Cecília Coimbra[11] comentando algumas pesquisas realizadas no Rio de Janeiro na década de noventa, relatou como resultado encontrado o perfil do criminoso na guerra contra o tráfico, sendo “homem pobre, preto ou pardo, entre 18 e 24 anos, morador de periferia, que não chegou a terminar o primário e é morto em logradouro público. É sem dúvida o ‘perfil do perigoso’ (…)”.

Partindo-se desse pressupostos, se cria a idéia de que o traficante, o bandido, são as pessoas encontradas nas favelas, se fazendo necessário políticas severas de combate contra os moradores desta localidade. Se autoriza portando contra estes moradores quase que uma prática de “vingança privada”, colocando-os a vindicta da sociedade.

Todavia, opondo-se ao extremo a essa idéia, quanto aos traficantes, bandidos encontrados na classe média, classe média alta e classe alta, estes mesmos meios que colocam os moradores das favelas em situação de exclusão, defendem que os jovens mais ricos foram desvirtuados em decorrência dos meios que acabaram conhecendo, necessitando de outras medidas, tais quais, educação e prevenção. Ou seja, aos pobres a exclusão, aos ricos a educação.

Natalino[12], transcreve uma das reportagens transmitida no Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão no dia 13 de maio de 2005, onde a reportagem mostra o seguinte diálogo:

REPÓRTER: Foi no centro acadêmico dessa universidade que a polícia paulista encontrou cápsulas, comercializadas por um estudante de odontologia. Essa foi a primeira apreensão da nova droga no Brasil. As cápsulas do medo, ou do vento, surgiram nas festas do último verão europeu. A chegada agora a São Paulo é uma amostra do avanço das drogas sintéticas no mercado brasileiro. Drogas que só nos últimos seis meses levaram 146 universitários para a cadeia.

DIRETOR DA DELEGACIA DE ENTORPECENTES DE SÃO PAULO: O traficante entre 18 e 25 anos, sempre da classe média, média alta e da classe alta. Pessoas que aparentemente tem uma estrutura econômica por trás, através de sua família, e se envolve no tráfico de drogas.

REPÓRTER: Policiais estão infiltrados em danceterias, raves e universidades. As investigações indicam que vêm da Europa, principalmente da Holanda, as drogas produzidas em laboratório e que são hoje um grande desafio para os educadores.

PSIQUIATRA DA USP: A única forma que nós temos para combater esse problema é a prevenção. É a educação. Nós estamos formando líderes no nosso país que nesse momento são grandes consumidores de drogas.

Observe-se que existe uma distinção entre os que devem ser eliminados, excluídos da sociedade, e aqueles que merecem uma solução pacífica, com estudo e medidas de prevenção. As políticas repressivas acabam por lançar na sociedade que a culpa da criminalidade é do pobre por sua condição, por não ter condições de educar adequadamente seus filhos, por não conseguir afastá-los das drogas, por não ter um emprego digno e por não auferir renda.

Moretzsohn[13] chama esta prática de discurso higienista “(…) que expressam a naturalização dos conflitos sociais, simplificados a partir de estereótipos (‘bandido’ versus ‘cidadãos do bem’) que reproduzem o senso comum a respeito e deixam ilesa a estrutura radicalmente segregadora e violenta da própria sociedade que reproduz o crime e a exclusão”.

Desta forma, através da estigmatização do criminoso, se legitima o sistema repressivo a agir de forma brutal, muitas vezes até com a morte de pessoas inocentes, sendo justificadas estas mortes pela legítima defesa ou pela ausência de valor dessa vida, o que afronta de todos os modos os direitos e garantias fundamentais dos seres humanos previstos constitucionalmente em nosso ordenamento jurídico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

BAYER, Diego Augusto. Mídia e Sistema Penal Uma relação Perigosa In: Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano.1 ed. Buenos Aires: Editorial Derecho Latino, 2012, v.8, p. 459-474.

BECKER, Howard S.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Ed. Zahar. 2008.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: A influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa e criminologia – o papel do jornalismo nas politicas de exclusão social. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-imprensa-criminologia.pdf. Acesso em 13 ago. 2012.

NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007.

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. Vol.1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

CITAÇÕES

[1] BECKER, Howard S.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Ed. Zahar. 2008.

[2] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 285.

[3] Ibidem, p. 285, Cuida-se de uma nova criminologia que se vale das imagens, arquétipos e ansiedades, e não, de análises cuidadosas e de descobertas científicas. Em sua deliberada intenção de ecoar os receios públicos e as pautas midiáticas, e com seu foco nas ameaças mais preocupantes, ela é, na verdade, um discurso politizado do inconsciente coletivo, muito embora reclame para si a virtude de ser realista e consensual, se cotejada com as teorias acadêmicas. Em suas figuras de linguagem e invocações retóricas típicas, esse discurso político se baseia na criminologia arcaica do tipo criminoso, do Outro.

[4] Apud BAYER, Diego Augusto. Mídia e Sistema Penal Uma relação Perigosa In: Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano.1 ed. Buenos Aires: Editorial Derecho Latino, 2012, v.8, p. 459-474. “Conforme Mello (1998), ao noticiarem o fato, os meios de comunicação não se limitam a informar. Estes tomam partido, julgam e condenam, ampliando os estigmas, sem dar voz à parte contrária. Os termos “estigma”, “etiquetamento”, “estereótipos criminosos”, constituem a chamada teoria do etiquetamento (ou labelling approach). A teoria do etiquetamento possui como tese central, conforme Andrade (2003, p.41) que: “(…) o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção””.

[5] YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 15-23.

[6] Ibidem, p. 36. Para YOUNG, “a contribuição da precariedade econômica e da insegurança ontológica é uma mistura extremamente inflamável em termos de respostas punitivas à criminalidade e da possibilidade de criar bodes expiatórios. Nós já vimos, na discussão de Luttwark sobre o impacto provável da precariedade econômica isoladamente, que elas opõem sutilmente os que estão no mercado de trabalho aos que estão transparentemente fora dele. A insegurança ontológica acrescenta a esta situação ação explosiva a necessidade de reelaborar as definições menos tolerantes ao desvio e de reafirmar as virtudes do grupo constituído”.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. Vol.1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. P.64.

[8] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: A influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. P. 22.

[9] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. P. 41.

[10]Apud CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983. P.99.

[11] Apud ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: A Influência dos Órgãos da Mídia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. P.167.

[12] NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007. P.121-122

[13] MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa e criminologia – o papel do jornalismo nas politicas de exclusão social. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-imprensa-criminologia.pdf. Acesso em 13 ago. 2012. P. 19.

Fonte: https://diegobayer.jusbrasil.com.br/artigos/121943199/teoria-do-etiquetamento-a-criacao-de-esteriotipos-e-a-exclusao-social-dos-tipos

Aluno regular do Doutorado em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Especialista em Direito Penal (Uniasselvi); Especialista em Gestão Estratégica Empresarial (FURB). Professor Universitário e Advogado.

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POLÍCIA MILITAR RECEBE NOVOS COLETES BALÍSTICOS

A Polícia Militar do Distrito Federal, no intuito de resguardar a integridade física dos seus profissionais de segurança, adquiriu 11.581 coletes balísticos, por meio do processo licitatório nº 054.001.415/2015.

No dia 28 de abril, a corporação recebeu o primeiro lote com 3053 unidades. São 500 modelos femininos e 2553 masculinos. O próximo lote que chegará em aproximadamente 120 dias contará com mais 8.528 unidades.Os modelos são da fábrica CBC – Companhia Brasileira de Cartuchos, empresa vencedora do processo licitatório.

Segundo a Diretoria de Patrimônio, Manutenção e Transporte da PMDF, os novos modelos são mais versáteis e mais leves trazendo mais conforto aos policiais militares.O nível de proteção dos novos coletes é o mesmo do modelo já existente na corporação, suportando o impacto de armas calibre 44 magnun e 9 mm por exemplo. Entretanto, a qualidade dos novos coletes é bem superior aos modelos anteriores e sua validade é de 6 anos.

Outra novidade dos novos modelos é que cada colete vem com três capas. Duas capas operacionais e uma velada, sendo possível ao policial realizar a higienização do equipamento e a troca de acordo com a atividade a ser realizada.

De acordo com o plano previsto para a distribuição dos novos coletes, após as fases de recebimento e incorporação, o equipamento será enviado prioritariamente para as unidades operacionais.

Fonte: PMDF

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