Poucos estão tendo uma ideia clara do momento que estamos vivendo. Estamos passando por um “realinhamento” de nossa cultura organizacional. Uma transição entre a liderança baseada em “cargos” e a liderança baseada em características. Fato que temos observado como uma fase da “desmilitarização cultural”. Com a formação de micro-grupos em nosso meio, precisamos compreender o Estágio de evolução do nosso grupo. Qualquer grupo passa por alguma versão de evolução. A primeira fase é sempre a formação do grupo, no nosso caso específico, micro-grupos nas redes sociais fechadas. Inicialmente, o grupo não é realmente um grupo, mas um conjunto de indivíduos, cada um focado em como tornar a situação segura e pessoalmente compensadora, enfrentando ao mesmo tempo problemas pessoais de inclusão, identidade, autoridade e intimidade. Em outras palavras, mesmo com os eventos marcantes iniciais que criam algumas respostas emocionais compartilhadas, nesse estágio, os novos membros estão mais preocupados com seus próprios sentimentos do que com os problemas do grupo e, mais provavelmente, operam na suposição “inconsciente” de “dependência”, ou seja, ainda necessitam de “alguém” que aponte o caminho, no nosso caso, o “formador de opinião”.
Os membros dos micro-grupos podem compartilhar a suposição comum de ser “dependentes” do “formador de opinião”, embora reajam muito diferentemente. Essas diferenças podem ser entendidas em termos do que aprenderam em sua experiência no grupo anterior, provavelmente começando na família. Por isso em alguns momentos utilizamos de textos com viés “psicanalítico” para gerar conflitos internos e consequentemente a autoconscientização do indivíduo. Um exemplo bom de texto psicanalítico foi o intitulado: “o processo de infantilização na formação do policial militar”. Utilizamos figuras de crianças fardadas para chocar o leitor, levando-o a experiências passadas em especial em seu rito de passagem durante o curso de formação.
O primeiro conflito encontrado em nosso processo de “desmilitarização cultural”, ou seja, de conscientização, a primeira fase do “policiamento inteligente”, rompimento com o “limitarismo” – limitador de mentes e potenciais, termo cunhado para exprimir tal limitação, foi lidar com a “autoridade” dentro do processo. Compreendemos que “cada policial é uma liderança em potencial”, pois todos possuem “poder”, “autoridade” e “legitimidade” para atuar, pelo menos “inconscientemente”, o que dificulta desvincular qualquer ação da “limitação” do “cargo”.
A Escola Superior de guerra, ao desenvolver sua “ideologia”, ou seja, seu sistema de ideias para dar sustentação a sua tese de que o “líder e o cargo” se fundem, alicerçado na escola tradicional, praticamente ultrapassada em nosso meio, nos limitou a meros “executores”, aqueles que matam, aqueles que executam, no passado pessoas, atualmente potenciais. Fazendo-nos reconhecer a “autoridade” somente em nossos “superiores”. Como somos “inferiores” como alguns filhos se sentem diante dos pais, nos tornarmos dependentes de nossos “tutores”. A autoridade, portanto, torna-se algo conflituoso para nós. Uma forma de lidar com a autoridade é suprimir a “agressão”, a “dependência da aceitação” e a “busca de orientação”. Outros aprendem que a forma de lidar com a autoridade é “resistir a ela”. Neste caso, também procurarão descobrir o que o “líder” ou “influenciador” deseja, mas sua motivação é descobrir para resistir em vez de consentir; o objetivo é ser “não dependente”. Ainda outros tentarão encontrar pessoas para compartilhar seus sentimentos de dependência e, assim, criar um subgrupo dentro do grupo maior.
É perceptível que na interação inicial entre os membros dos micro-grupos ocorra um teste mútuo. O novo grupo testa seu “influenciador” para observar quanta orientação será oferecida e os membros testam uns aos outros para verificar quem pode influenciar e quem controlará quem. Um processo que não se diferencia do processo de estabelecimento de uma ordem hierárquica, em nosso caso, por não haver mais uma “liderança” imposta pela ocupação do cargo “superior”, mas pelas características do “indivíduo” que tornou seu pensamento “predominante”. Um ponto interessantíssimo é que vários membros dos micro-grupos se manifestarão como competidores por liderança e influência, algo natural no processo de “desmilitarização cultural”, pois já não existe mais a referência do cargo, mas sim de “ideias”, “palavras” e “pensamentos”, que em muitos momentos serão “apropriados” e difundidos por influenciados e pelos “competidores”, que inevitavelmente se tornarão ações. Sejam elas, às vezes conscientemente, às vezes inconscientemente, no último caso, as ideias do “influenciador” já se tornou parte do “imaginário coletivo” do grupo. Outro ponto importante é que se algum deles sugerir algo ou levantar algum ponto importante, alguém contestará ou tentará tomar uma direção diferente. Essa competição agressiva entre os “potenciais influenciadores” não permite que o grupo chegue a qualquer consenso real no início de sua vida, e um paradoxo da formação de grupos é que não há meios de abreviar essa luta inicial pelo poder.
As corporações militares pagam um alto preço por “impedir” a “luta pelo poder em seu meio”, por meio do “limitarismo”, pois se isso for varrido para “debaixo do tapete” por meio de procedimentos formais, virá depois à tona em torno de questões problemáticas simples que o grupo estiver tentando resolver. Nossa tese é a de que os conflitos existentes atualmente no seio do grupo e a dificuldade dos policiais militares em chegar a um consenso em questões simples, como por exemplo, definir o que querem em uma mesa de negociação, é reflexo dos instrumentos de controle que impediram discussões simples no passado. Fazendo com que os membros do grupo ao não conseguirem estabelecer a comunicação gerem mais conflitos e em alguns casos utilizem da lógica do paradigma que estão inseridos. Aqueles que estão no paradigma da segurança nacional, onde o cidadão é visto como inimigo potencializará isso, sendo mais radicais e agressivos, neste caso, aqueles que estão no paradigma da segurança cidadã, onde o policial é visto como um mediador de conflitos que respeita a legalidade, também agirá dentro da visão que está inserido, fazendo surgir dois grupos distintos. Um moderado e um radical, o pensamento novo e pensamento antigo. Duas gerações entram em conflito, potencializa-se a luta pelo poder.
No processo de formação de grupo, aliando-se a tese levantada acima, o micro-grupo pode “atacar” coletivamente o “influenciador”, negar “agressivamente” suas sugestões e puni-lo por seu silêncio. Ou pode, repentinamente, seguir por conta própria, levado por um dos membros, com a declaração implícita ou explícita: “Precisamos nos afastar do líder que falta à palavra e seguir por conta própria” o nosso caminho. Neste momento, o “formador de opinião” que tiver o pensamento predominante no grupo torna-se o líder, pois sua ideia foi assimilada e difundida pela maioria. Houve consenso no grupo. O foco já não é mais o detentor do cargo, que se utiliza do discurso da autoridade para oprimir, mas sim o detentor da característica, que utiliza-se da autoridade do discurso para libertar! Neste estágio a “desmilitarização cultural” foi assimilada, pois os membros do grupo, conscientemente, reconhecem que estão conscientes de seus atos e que estão inseridos no grupo. O indivíduo e coletivo se misturam em uma “simbiose”, onde fica difícil identificar o pensamento individual e o pensamento coletivo.
Aderivaldo Cardoso: Especialista em Segurança Pública – Pós Graduado em Segurança e Cidadania pela Universidade de Brasília pelo Departamento de Sociologia. Coordenador do Movimento Policiamento Inteligente.