Hoje apresentarei uma resenha do texto polícias e sociedades na Europa é um pouco longo, mas vale a pena, foi a primeira aula da disciplina POLÍCIA, ESTADO E DEMOCRACIA ministrada pelo professor Arthur Trindade Maranhão da Costa.
O autor inicia sua argumentação afirmando que “não há uma história natural da polícia, ela como conhecemos hoje é o produto de uma sucessão de rupturas” e nem sempre foi “composta por agentes profissionais, recrutados, nomeados e remunerados por uma autoridade pública”.
Em todas as sociedades existem proibições e tabus, mas o respeito a essas regras está condicionada ao controle social “imerso no funcionamento cotidiano do grupo”. Entre os esquimós, a sanção por causa de uma violação de norma de comportamento é condenada como um negócio, é considerado como um negócio privado, cabendo a vítima ou a seus familiares prender e castigar o culpado.
Os conflitos passam a ser resolvidos por meio de mediares quando ocorre um aperfeiçoamento da organização social, para o autor a “presença de uma força policial só é detectada a partir do momento em que a divisão do trabalho se acentua e estruturas, diferenciados de dominação política, religiosa e militar aparecem”.
O surgimento do Estado foi preponderante para a distinção entre a função policial e as demais funções sociais. Ele surge e começa a dicotomia: público e privado. O espaço público é organizado em torno de valores e de interesses distintos dos particulares. O patrimônio público se difere do patrimônio dos governantes.
O discurso enaltecendo a ordem pública toma força, Aristóteles chega a dizer que “uma cidade não pode funcionar sem governo e sem ordem”. Assim, começa a surgir “agentes especializados” em fazer respeitar as leis da cidade utilizando a coação física e a ameaça de ações penais, mas ainda são pouco profissionalizados, multiplicados e pouco coordenados entre si.
É interessante salientar que a polícia ateniense nos séculos V e IV a.C tinha o papel de polícia política, que consistia “tanto em evitar as fugas – e as rebeliões – de escravos quanto em impedir a aristocracia rural, que se instala progressivamente em Atenas, de conspirar, por ociosidade tanto quanto por ambição, contra a democracia no seio das múltiplas sociedades secretas” (pag.33).
A mesma distinção entre as modalidades de defesa dos interesses públicos e dos interesses privados se observa em Roma entre 450 a.C e o século III a.C. O modelo romano da época “mostra que o desenvolvimento de uma força policial organizada não depende diretamente do nível de violência social, mas supõe mudança nas representações que as camadas dominantes fazem de si mesmas e nas condições do equilíbrio social”. Mesmo sendo a “violência política e as desordens de todos os tipos” rotinas em Roma a segurança é atribuição da iniciativa privada.
Somente com Augusto, e com o desenvolvimento do Estado imperial que surge uma “verdadeira administração policial pública, profissional e especializada”. Cabe ao prefeito da cidade – Praefectus urbi – manter a ordem, intentar ações penais contra contraventores, além de outras atribuições. O prefeito é o encarregado direto do comando dos vigiles “que patrulhavam as ruas a serviço da polícia noturna e da luta contra os incêndios, e os stationarri, que permanecem em posto fixo, numa espécie de departamento de polícia de bairro”. É importante salientar que os responsáveis por comandar a manutenção da ordem pública, a partir daí, passam a ser funcionários nomeados e pagos pela autoridade política central.
Esse modelo policial é desenvolvido pelos sucessores de Augusto. Um deles, Trajano, criou um corpo de frumentarii que funcionava como uma espécie de “caçadores de prêmios, acuando os criminosos através de todo império”. Com a queda de Roma, esses órgãos especializados desaparecem da Europa por vários séculos.
Com a chegada da idade média e o sistema feudal cada senhor em suas terras passa a ser o detentor dos “poderes judiciários” e dos “meios de coação necessários para tornar efetivas as sentenças proferidas”. A justiça criminal é garantida em nome do rei por esse senhor local, “e o exercício dessa função extrai sua legitimidade de uma delegação de autoridade recebida do rei, de quem emana toda justiça”. É sistema é frágil e dá margem para a “vingança privada” ou a “justiça pelas próprias mãos”.
O autor salienta que devido à insegurança e a ausência de um poder político capaz de “impor a paz pública”, muitas iniciativas foram tomadas na idade média com o objetivo de reduzir a violência. Mas todas têm uma visão e métodos particulares para tratar a ordem e a segurança.
Na Inglaterra, provavelmente, começa a nascerem às primeiras formas de polícia pública na Europa. Esse processo está diretamente ligado a centralização política e administrativa. Nessa época surge o Sherif como o representante da Coroa em nível local, ele exerce ao mesmo tempo “funções policiais e judiciárias”, podendo inclusive “infligir multas àqueles que contravenham certas leis”.
Esse sistema também dá lugar a abusos, pois os Sherifs poderiam prender os membros de sua corporação em caso de erro penal, além de inventar falsas acusações contra os Hundreds “a fim de perceber mais multas, uma parte das quais vai para o Tesouro real e a outra lhes serve como remuneração”.
Vários outros modelos vão surgindo ao longo do tempo. Gostaria de prender-me um pouco mais ao modelo Francês citado pelo autor, pois pelo que parece é o que mais se assemelha ao modelo brasileiro. Segundo ele esse modelo repousa essencialmente em dois pilares: “a Maréchaussée, de origem puramente militar, nos campos e a tenência de polícia em Paris”. Quanto às cidades de província “as múltiplas polícias permanecem nas mãos dos notáveis locais que a organizam segundo sua vontade”.
De origem puramente militar, a Maréchaussée é territorializada a partir do século XVI. Suas ligações com as autoridades militares se afrouxam. Em contrapartida, ela recupera competência de polícia civil nos campos: repressão a pilhagem, do contrabando, dos contrabandistas de sal que fraudam a gabela, dos motins, das insurreições camponesas, das tomadas de grãos à força em período de penúria. Ela vigia a populações itinerantes, prende os vagabundos, os gatunos, os desertores, Enfim, ela assegura o controle das regras relativas ao comércio, à higiene…Em suma, já preenche as funções da guarda civil dos dias atuais. (…). Fora uma mudança de nome sob a Revolução, que transforma a Maréchaussée em Guarda Civil, a organização e o funcionamento dessa polícia militar permanecerão quase imutáveis do século XVIII até hoje. (2001:49)
Luís XIV cria em 1667 o ofício de tenente de polícia de Paris “para confederar e pôr em ação sob seu nome, todo um conjunto de tarefas, ligadas à administração geral da cidade, que se disseminaram durante décadas entre múltiplas autoridades concorrentes e ciosas de suas prerrogativas”. O tenente de polícia possuía competências muito amplas dentre elas: zelar pela segurança pública, organizar a repressão criminal, tomar as disposições necessárias para evitar incêndios e as epidemias ou ainda limitar os efeitos das inundações causadas pelas cheias do Rio Sena.
Ele manda guardar os mercados e tomar medidas que facilitam o abastecimento cotidiano da capital. Atento ao movimento das populações flutuantes, manda vigiar os hotéis e os quartos de aluguel, e acompanha o “estado da opinião” através do controle das gazetas e da livraria: cabe a ele impedir a distribuição dos panfletos e dos libelos, e de um modo geral acompanhar de perto os procedimentos de toda uma gama de suspeitos, considerados como adversários, ao mesmo tempo, do Trono e do Altar – judeus, protestantes, jansenistas…(2001:50)
Diariamente o tenente-geral de polícia apresenta ao rei dois boletins cotidianos: o “boletim político” e o “boletim moral”. Essas informações são coletadas diuturnamente por um “exército de espiões”, redes de informantes são constituídas, recrutados entre criminosos, mas também entre lacaios, os estudantes, os escreventes sem dinheiro e vários outros. Observa-se praticamente tudo, desde práticas libertinas a intemperança ou a paixão pelo jogo dos membros da aristocracia, do clero, dos principais burgueses de Paris.
O espaço parisiense é estruturado, dividido em setores e em bairros, à frente dos quais operam comissários de polícia assistidos por inspetores. Proprietários de seus cargos, esses oficiais preenchem múltiplipas funções: mediadores, juízes de paz, investigadores, juízes de instrução – sem esquecer a do recrutamento e do controle dos informantes. Todo um sistema de patrulhas a pé e a cavalo funciona dia e noite. Além disso, postos de guarda são implantados nos principais pontos estratégicos da capital. Assim, a metade de três mil homens de que dispõe o tenente-geral de polícia é ocupada no serviço das patrulhas diurnas e noturnas ou como reserva nos postos de guarda.
É interessante observar esses pontos, pois são muito parecidos com o nosso atual modelo de policiamento, inclusive no que se refere ao “boletim diário” que é levado ao comandante geral pelo Centro de Inteligência. Alem disso, o autor ainda afirma que a eficácia desse sistema em Paris é “mais problemática do que pensam os observadores estrangeiros”.
Esse modelo influenciou vários países na Europa e ultrapassou o século XVIII, Napoleão Bonaparte imprime a marca duradoura do modelo francês nas polícias européias, com a “difusão do código penal napoleônico e à adoção de inúmeros países, de uma polícia militar calcada no modelo da antiga Maréchaussée (polícia montada), rebatizada de Gendarmerie em 1791. A Holanda, Prússia, Espanha (Carabineros), Grécia, Bélgica e, por que não dizer, Brasil aderiu a esse modelo, pois D. João seguiu esse modelo em Lisboa e o trouxe para o Brasil em 1808.
Contrapondo-se a esse modelo Francês, em reposta as “reações negativas da opinião pública inglesa a tudo que possa lembrar a cara odiosa das polícias do continente”, surge uma questão a ser resolvida: “é preciso policiais bem visíveis para que possam ser controlados pelo público e para não parecerem uma “polícia secreta”, mas é preciso evitar que seu uniforme lembrem o modelo de polícias militares do estilo das gerdarmarias”. Essa “nova polícia” é alicerçada na seguinte filosofia:
Os constable deve ser civil e cortês com as pessoas de qualquer classe ou condição…Ele deve ser particularmente atento para não intervir desastrosamente ou sem necessidade, de modo a não arruinar sua autoridade…Ele deve lembrar que não existe nenhuma qualidade tão indispensável ao policial como a aptidão perfeita para conservar seu sangue-frio. (2001: 52)
Assim o modelo Inglês agora passa a ser o mais cobiçado ocorrendo uma reviravolta nas concepções dominantes em matéria de ordem e de segurança. Esbarramos em um primeiro problema que chama cada vez mais a atenção: a legitimação das novas polícias. Outro fator a que deve ser observado é a limitação dos riscos de enfrentamento e sensibilização das “novas camadas operárias urbanas para os valores políticos e disciplinas de vida que são impostos por uma modernização social que afeta então toda a Europa, os representantes da autoridade devem, na medida do possível, ser, se não amados, pelo menos aceitos”. Começa a surgir uma concepção preventiva contrapondo-se a reativa do verdadeiro papel da polícia na sociedade, “deseja-se que a polícia não se limite a esperar os acontecimentos criminais para reagir, mas que ela previna os comportamentos delituosos”. A partir daí o crime passa a ser “negócio” do Estado e de suas agências, pois retirou da vítima toda “margem de manobra e de iniciativa do início do processo penal”.
O desenvolvimento urbano faz surgir assim os primeiros embriões do modelo policial atual. O primeiro passo foi à centralização do poder por meio da criação, em vários países, de polícias militarizadas. Por outro lado, segundo Monet, “sob o efeito de múltiplas pressões políticas, todos os governos se empenham, desde a virada do século, num movimento que os conduz, no mínimo, a reforçar seu controle sobre as polícias locais e, no máximo, a integrá-los num corpo único de polícia de Estado”.
O primeiro processo é claro na Irlanda. Por serem consideradas pouco confiáveis as forças locais, análogas ao modelo constables de paróquia ingleses, são substituídas em 1786, por um corpo de polícia profissional. Esse modelo é centralizado e a força policial é remunerada por fundos públicos. “Concretamente, ela se parece mais com uma espécie de exército de ocupação, ou com a Maréchaussée, no sentido francês do termo, do que com uma força de polícia civil”. Essa polícia é composta exclusivamente por ingleses e protestantes, os homens são armados e estruturados segundo o modelo das unidades militares, vivem obrigatoriamente em caserna, o que os isola ainda mais da população e reforça o controle que a hierarquia exerce sobre eles. Essa polícia “parece menos exercer uma função específica, delimitada por leis precisas, que constituir o segmento particular de uma vasta máquina administrativa destinada a submeter a periferia às normas fixadas pelo Centro”.
Uma força policial igualmente militarizada, semelhante aos Cabineiros na Itália, é instituída na Espanha em 1844 com a criação da Guarda Civil. Esse modelo foi em decorrência de um projeto político que tinha como objetivo, “através das manifestações físicas e simbólicas”, reforçar a autoridade do Estado central “desenvolvendo o sentimento da identidade nacional num povo dividido por profundas diferenças sociais, econômicas e políticas”. A Guarda Civil “não é apenas uma polícia que se desdobra no terreno: é uma bandeira que ostenta e desfila nos territórios mais isolados”.
Todas essas forças policiais resistiram a todas as reviravoltas políticas que a Europa passou durante os séculos XIX e XX, ocorrendo no máximo mudanças de nome das instituições durante esse período.
POLÍCIAS E SOCIEDADES NA EUROPA
MONET, Jean-Claude
(Capítulo I e II)
2001
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